quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

É natal

Já não saem mágoas dos meus lábios nem morro em delírio ao sol.
As nuvens não voam rubras em assonâncias de desgosto e há no canto do rouxinol de mim um sentimento de ventura como se fora Abril a cantar.
As folhas amareladas que caem das árvores na minha rua lembram sementeiras do tempo em que a amor passou e não encontrou postigo aberto.
Tudo se confunde, por vezes, quando inspiro pensamentos e não morro em fluxos de procissão nem em refluxos dos oceanos de ternura que já vivi.
O sol morre em delírio, as nuvens dão ideia de chuva, remiro-me em mim e sorrio constrangida ao ver os borbotões de horas gastas em pequenos nadas.
Foram equinócios, foram solstícios sem data marcada, foi volúpia in extremis excedida por grandes momentos de glória.
Cala-se agora o canto do desgosto, desmaia o luar, excedo ideias de moinhos quixotescos e lanço, à laia de sentença, um par de olhos para os toques de aguarela patenteados no fundo do teu primor. Ocultas defeitos que de tão velhos já nem desfiam desapontamentos na singela e pobre tonta que por vezes pareço ser.
E hoje, irreverente como sou, mal a claridade desponta, pinto os lábios de sol, as unhas de vaidade e coloco ao colo um cordão de espigas de amêndoa amarga não trabalhada.
Não há quimeras em sortilégios de sol nem mortalhas de luas desmaiando em aromáticas pradarias, nem o tempo é de cardos agora.
O vento sibila lá fora mas cá dentro já me chega o cheiro arroz doce incensado com canela, os copos de cristal, até há pouco embalsamados, despovoam jubilosamente a porta do seu lugar em expressão brilhante como se foram humanos.
Cheira a ervas aromáticas, cheira a vinho moscatel, tomam-se as medidas das coisas, passam as horas e seguem-se as contas da Vida em festejo de júbilo pressentindo que nada volta a ser como dantes: eu sou outra, acho mais acertado fazer uma viagem à volta de mim, dar quatro passos, não me desfazer em pedaços, gritar com esperança de não mais ouvir falar em guerra, cheirar a redenção do amor em cada ser humano, embarcar em outro cais, fazer gestação em novas encruzilhadas, comunicar os meus desejos infantis de não capitanear em ilhas desertas, esperar por ECCE HOMO, e dar-vos um imenso abraço porque, antes de mais, é NATAL

Clara Roque Esteves

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